representação de justiça com reflexões do isolamento pós pandemia

Reflexões do isolamento: será que o sistema jurídico atual servirá após a pandemia?

Entender o passado nos ajuda compreender o futuro. No momento em que estávamos estudando cada vez mais questões atinentes à tecnologia, inteligência artificial, Lei Geral de Proteção de Dados e direito das Startups, uma descoberta do final do século XIX nos atinge em cheio! Um microrganismo que alguns biólogos defendem não ser nem um ser vivo, um vírus em forma de coroa (coronavirus) que provoca a doença COVID-19. Vírus, palavra que vem do Latim, significa fluído, venenoso ou toxina.

A Pandemia vem causando uma série de impactos sociais nunca vistos na História da humanidade. Muitos têm comparado às grandes guerras, porém mesmo as guerras chamadas historicamente como “mundiais” foram centralizadas na Europa e não tiveram o envolvimento de todos países do globo.

No momento que este artigo é escrito a pandemia já atinge 185 países, aproximadamente 2 milhões de infectados e cerca de 120 mil mortes.

Porém, embora muitos operadores do direito tenham se valido de ferramentas tecnológicas de vídeo conferência, como inúmeras lives, artigos e discussões acerca das possíveis consequências da pandemia nas relações jurídicas, tudo ainda é muito incipiente. Afinal ainda estamos no meio da crise e a proporção das consequências causadas – embora já dimensionadas – podem ser aumentadas exponencialmente.

Deixo aqui uma colocação pessoal de que este artigo pode ser efêmero, uma vez que no momento que ele for lido, talvez já esteja desatualizado. A mudança pode ocorrer em questão de dias, dado o momento.

Embora possa se ter uma previsão dos impactos sendo discutida pelos operadores, bem como o PL nº 1179 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado, as consequências ainda são imprevisíveis.

A História do Direito e a pandemia

Voltemos à evolução histórica da Teoria da Imprevisão. A primeira notícia que se tem sobre a teoria da imprevisão foi na Lei 48 do Código de Hammurabi, nos termos de Bittar Apud Sidou que assim dispunha:

“Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano”.

Após isso, o que se tem neste sentido partiu ainda no Direito Romano com a cláusula rebus sic stantibus sendo esta uma relativização de outro famoso instituto, o do pacto sunt servanda.

Tal instituto foi previsto em várias situações passando pelo direito canônico, em especial Santo Agostinho, mas ainda de forma doutrinária – sendo posteriormente consagrado em várias codificações: Código Bávaro (1756), o Código Prussiano (1774) e o Código Austríaco (1811) por exemplo.

Todavia, estes movimentos foram ainda de sociedades isoladas. Apenas com a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), alguns efeitos passaram a ser sentidos em mais de uma nação, como ocorre hoje em proporção de maior magnitude em relação à atual pandemia.

Vale lembrar que ao fim da primeira grande guerra, o mundo sofreu com a pandemia da influenza espanhola, que possivelmente infectou ¼ da população da época e vitimou mais de 50 milhões de pessoas. Lembrando que estes dados carecem de maior validação pois na época os sistemas estatísticos eram limitados comparados aos atuais.

Voltando ao raciocínio jurídico, a primeira grande guerra do século XX, trouxe consequências diversas aos contratos civis, uma vez que houve alteração abrupta da realidade econômica em relação ao status quo anterior, durante e após a guerra.

Em razão dos desequilíbrios surgidos pela guerra, na França, em 1918, editou a Lei Falliot, que conforme os estudos de Darcy Bessone (BESSONE, Darcy. Do Contrato – Teoria Geral, São Paulo: Saraiva, 1997) afirma:

“Na França, ainda sob o fragor das batalhas, o problema desfiava solução, a Corte de Cassação resistiu tenazmente às solicitações de revisão dos contratos. O Conselho de Estado, no entanto, cedeu logo à premência dos fatos, firmando o princípio de que o poder público só poderia exigir do concessionário o cumprimento do contrato, tornando excessivamente oneroso por consequência de circunstâncias novas, das quais houvessem resultado dificuldades superiores às que poderia prever, se os revisse, adaptando-os às circunstâncias do momento. Em face da resistência da Corte de Cassação, tornou-se necessária a solução da questão por meio de lei, e, a 21 de maio de 1918, promulgou-se a Lei Falliot.

Tal lei foi de suma importância para o desenvolvimento do direito civil moderno, de forma que os contratantes passaram a se preocupar mais com questões exteriores que pudessem ter impacto nos contratos firmados. Vale destacar que foi no transcorrer do século XX que foi se aprimorando nos países desenvolvidos a cultura da advocacia preventiva e o desenvolvimento de relações contratuais das mais diversas.

A pandemia no Brasil

Agora falemos da realidade brasileira. Além de um Código Civil vasto, com mais de 2 mil artigos, possuímos muitas leis civis esparsas, regulamentando uma série de relações jurídicas. Uso aqui de exemplo a Lei 8.245/1991 que dispõe sobre a locação de imóveis urbanos.

Podemos citar uma enormidade de diplomas legais que regulamentam as mais diversas relações contratuais, passando pelo direito do consumidor, direito societário, direitos creditórios entre outros.

Embora esteja em vias de ser promulgada a lei PL nº 1179 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado, com muitos dispositivos interessantes, será mesmo que conseguirá abarcar todas questões civis? Ainda mais com a realidade de uma codificação excessiva que temos no Brasil.

De certo que haverá uma intensa judicialização de várias questões que terão consequências durante e após o período de pandemia.

E nesse momento de isolamento social, e pensando no que poderia fazer aos meus clientes e imaginando situações hipotéticas nos mais diversos sentidos, recordei de uma fala do saudoso Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, falecido em 2017. Que disse:

“nosso sistema caminha a passos largos para o Common Law”

Na opinião dele, cada vez mais a estrutura da jurisdição constitucional brasileira se estrutura em torno da valorização dos precedentes judiciais e da jurisprudência para além do que dita a doutrina clássica.

Vale destacar que tal opinião se deu após o advento do novo Código de Processo Civil que estabeleceu um sistema de precedentes, como se pode observar nos seguintes artigos a seguir transcritos:

Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade;
II os enunciados de súmula vinculante;
III os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional;
V a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. (…)

Podemos dizer que o Brasil com o advento do novo CPC, passou a ter um sistema de jurisdição mista com elementos do Common Law, com a observação de precedentes judiciais e a integração ao sistema ao qual aderimos desde os primórdios da República do Civil Law e que após o advento da Constituição Federal de 1988 passou a adotar de forma mais intensa o processo legislativo, uma vez que no texto da carta magna existe uma série de normas de eficácia limitada, normas de eficácia contida, além de abrir uma série de prerrogativas para sistematizar as mais diversas matérias. Por ser uma constituição extensa, prolixa e analítica, a possibilidade de codificação de normas infraconstitucionais a fim de regular o maior número de matérias, cria um ambiente de excesso de normas e que culmina com uma intensa judicialização.

Por essa razão, uma vez que não se tem uma dimensão do que as consequências da pandemia de 2020 causarão, certamente nosso sistema, embora com muitas leis, acabará não contemplando todos efeitos, o que fará com que a aplicabilidade destas acabe se tornando impossível. Podemos ter consequências tenebrosas vez que o atual sistema legal é completamente caótico.

Os magistrados por sua vez terão que aplicar o princípio de legalidade de forma diferida, o que pode trazer consequências aos jurisdicionados, vez que serão proferidas decisões das mais diversas, nem sempre seguindo a mesma lógica e dificultando a orientação dos casos – dado não haver previsibilidade das decisões.

Felizmente a atual processualística civil contempla o IRDR ou Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que possibilita a harmonização de decisões, bem como fortalece a jurisprudência.

Por fim, a conclusão deste breve estudo realizado no meio de uma quarentena fez com que pensasse se o sistema legal e judicial brasileiros, já tão combalidos, irão suportar este contundente impacto após a pandemia da COVID-19.

Talvez tenhamos que nos lembrar da fala do ministro Teori sobre caminharmos para o Common Law ou se formos ter o sistema de jurisdição mista, esse possa ter sua aplicabilidade prática viabilizada por meio de um enxugamento das normas vigentes, incluindo boa parte daquelas que estão no texto constitucional. Criaríamos assim um sistema mais adequado para o século XXI e com maior manobrabilidade para uma sociedade digital, rápida e cada vez mais integrada que necessita de mudanças com grande velocidade.

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